Cai a tarde no Seringal Novo Encanto

Thais Carvalho Expedição, Seringal Novo Encanto Deixar Comentário

Mansamente cai a tarde no Seringal Novo Encanto, bem ali na minha frente o semblante da Samaúma, calma e serena sob o róseo do Céu profundo. Os pássaros se recolhem em seus mais secretos ninhos e esconderijos para a passagem de mais uma noite, o merecido descanso depois de um dia de procura e cantoria. O Rio Iquiri corre no fundo do seu leito, com seu amarelo de pequeno caudal, característica desse período de estiagem, que enxuga as águas da floresta e faz as folhas secas das árvores caírem aos montes. Parece que toda a natureza está a se recolher ou mudar para outro lugar, em se prolongando um pouco mais a ausência das chuvas, com certeza que a região se transformaria em um imenso deserto. Tudo é muito dependente das águas que caem em torrencial, logo que passa o período seco.

Porém, o pequeno rio e a floresta resistem a passagem do intenso verão, a vida, mesmo assim, insiste e persiste no mais remoto canto do planeta. A natureza aguarda a chegada das águas das chuvas que vem trazendo a exuberância da vida novamente ao verde da floresta. Uma revoada de folhas anunciando o auge da seca é a defesa das árvores para se protegerem do clima árido e proteger o solo arenoso e seco da pouca umidade que ainda resta. Por um instante parece que a vida abandona a floresta na sua quietude intermitente, mas secretamente corre a vida nos veios profundos da terra, das árvores e de todos os seres vivos que coabitam esse mundo verde. Todo o ano se repete o mesmo ritual de intenso contraste, recolhendo e expandindo a vida nesse manto verde, onde predomina duas estações bem definidas, uma seca com algumas friagens e outra sempre quente e úmida.

Assim é o Seringal que se transforma em uma ilha de resistência ao desmatamento, ocupações de terras e queimadas que coexistem ao redor desse pequeno mundo preservado. No auge da seca a fumaça das queimadas formam uma nuvem cinzenta e constante, que as vezes chega a arder as vistas junto com a secura do ar. Essa realidade, em muitos lugares da Amazônia, já acontece a muitas décadas, me lembro bem, no início da década de 1980, quando cheguei em Rondônia como eram intensas as queimadas. Algumas vezes, o aeroporto, em Porto Velho/RO, era interditado, por alguns dias, por conta das queimadas e a intensa cortina de fumaça que se fazia nas matas e nas cidades. O fogo é a forma mais fácil de vencer a floresta e “limpar” as áreas para o plantio de capim ou qualquer outra cultura. Em outras áreas do Brasil isso aconteceu do mesmo jeito, quem viveu viu, muitos já se esqueceram daquele passado já distante, de queimadas, coivaras, retirada das madeiras nobres e os sucessivos plantios, café, cana e pastagem. Quase toda a Floresta Atlântica foi colocada abaixo e o Cerrado não foi e ainda não é diferente. Chega a época seca começam as queimadas, até nas cidades as pessoas costumam colocar o fogo para “limpar” os quintais e as áreas de mata. Essa é uma cultura que ainda levará alguns anos para ser transformada e as pessoas se conscientizarem de outras formas mais eficazes de trabalhar a terra sem agredi-la tanto.

Como se não bastasse todo esse fogaréu de chamas a crepitar na terra seca, ainda temos o fogo que arde na língua de muitas pessoas, agora falando de modo geral da humanidade que ainda está distante de praticar o amor ao próximo de forma constante e abrangente. Cruel como uma brasa a arder no coração dos insatisfeitos, daqueles que não fazem o menor esforço para diminuir o consumo de combustível, de carne, de papel e outros insumos e alimentos que tomam o lugar das florestas. Mesmo assim, é preferível reclamar do governo e acusar as pessoas que deixam de fazer alguma coisa, o governo, os políticos, as empresas e outros setores. Penso que sou um pouco alienado politicamente, pois já vi muitos governos passarem e muito pouca coisa ser edificada, e a história continua queiram ou não. Se a consciência do povo não mudar, não se mudam os governos, os políticos e as empresas.

O que eu posso fazer dentro dessa história é fazer a minha parte, aquilo que me cabe onde eu estiver. Seja no trabalho, onde já ocupei cargos de confiança, seja em casa, onde quer que eu esteja, isso é o mais importante. Cuidar bem do lixo, dos meus praticados e principalmente da minha palavra, para que ela não seja mais uma brasa acessa no meio desse fogaréu. Essa sim, deveras importante, pois sei bem que ela vai e um dia ela volta, inteira, reformada, revestida com nova roupagem, mas com o mesmo conteúdo e a mesma carga de veneno ou do Bem que plantei. Penso que seria o maior trabalho que as pessoas deveriam fazer, cuidar das suas palavras e suas atitudes. Cuidar, também, das crianças, esse sim o maior plantio e o maior patrimônio que temos em nossas mãos. Não creio em Governos passageiros e que tudo se modificará de cima para baixo, de uma hora para outra, prefiro plantar as boas sementes no meu coração e no coração das crianças e jovens, pois o que pode modificar o mundo é uma nova geração mais consciente e mais sadia. O país precisaria de um projeto a longo prazo e muitos governos para executá-lo, um projeto de educação, de infra estrutura, saneamento e outras coisas básicas, sem as quais não há como modificar essa nossa cultura que caminha em uma direção perigosa.

Continuo a observar a Samaúma, em seu silêncio e com sua elegância, nada pede, nada exige, nada reclama, sem acusar ninguém, nem mesmo suas vizinhas e as outras árvores que invadem o seu espaço. A Natureza está satisfeita com as condições que lhe são oferecidas, não reclama das queimadas, dos desmatamentos, oferecem sem nada pedir. Eu a ver tudo isso, reflito em mim, a minha satisfação com a vida, com aquilo que eu sou e o que eu tenho. Tudo me foi dado na quantidade suficiente para eu viver bem, o que preciso é ter gratidão e trabalhar para melhorar o eu em mim e contribuir com o meu próximo da melhor forma possível, sem muito reclamar. Tenho todas as condições de lutar e ser feliz. Dentro de nós vive uma centelha Divina que pode vir a ser uma luz no mundo onde vivemos.

 

Texto: Paulo Afonso Amato Condé – Coordenador do Projeto Banco de Matrizes em Redes, projeto que localiza e coleta material genético de plantas nativas (Mariri e Chacrona) para a produção de mudas em viveiro e seu cultivo em áreas do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal*.

Fotos: Marcelo Dagnoni.

*A Novo Encanto é o braço ecológico do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal e desenvolve atividades em parceria com o Centro.

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